QUEM DISSE QUE MORREU A MADRUGADA
“…Mamã, preciso de vinte escudos para ir à Esplanada.”
Estávamos em 1965. Na Esplanada do Cinema St. António em Faro ia realizar-se mais um espectáculo de variedades e, nessa noite de Verão, o lote de artistas valia a pena não perder. O meu livro de autógrafos tinha de ser honrado com as fotografias e dedicatórias de alguns deles. Desfolhando-o, há um por cada página, fotografias belas e retocadas como só o “Apollo” sabia fazer: Madalena Iglésias, Tony de Matos, Alberto Ribeiro, Jorge Alves, Laura Alves, e estrangeiros como Henrique Morineau, Gigliola Cinquetti (pedida à RAI e recebida por correio), etc., etc., etc.… Mas essa noite era diferente. Eu iria conhecer pessoalmente a minha intérprete por excelência, aquela voz, aquela força estranha e arrebatadora que ouvia pela rádio, religiosamente e comovido ou no “pick-up”, quando me isolava no quarto, sofrendo problemas, desamores e raivas de adolescente… Não foi difícil obter os vinte escudos, ainda que ultrapassasse a mesada, pois lá em casa os meus caprichos pró-artísticos sempre foram encarados como normais e muito bem aceites, dado que era bom estudante, e tendo em conta que a minha mãe só não cantou profissionalmente porque o terror dos palcos se apoderou dela em experiências que teve a nível de récitas escolares, e porque o meu pai era autor e actor amador. Eu próprio já tinha começado a pisar o palco do Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve, mais tarde Grupo do Teatro Lethes.
“Aqui tens o dinheiro. Só não percebo como é que podes gostar dessa artista. Ainda se fosse o Tony de Matos ou a Madalena…” – disse a minha mãe.
“Só prova que tem bom gosto, o rapaz!” – e mais não disse o meu pai.
Nunca discuti com eles esta minha preferência pela Simone. Desde miúdo que sou muito observador, e não me sobra tempo para conversas estéreis. Os gostos de cada um são para respeitar, e o meu não tinha nada a ver com as opiniões dos meus progenitores. Nem eu próprio saberia explicar naquela altura, porque é que aquela voz e interpretação eram as únicas que me levavam às lágrimas. Só sabia que era assim, daquela forma, que eu queria cantar um dia. Costumo dizer que foi a mais importante professora de canto que tive, sempre atento à sua pronuncia, à divisão das frases, à intenção de cada palavra, ao sentimento que exprime em cada gesto… É que quando a Simone canta, por exemplo, um desgosto de amor, não traduz a humilhação e o masoquismo que a maioria das mulheres sente, mas pelo contrário, é a raiva, o inconformismo e a sobrelevação… que elas não lhe perdoam.
Os homens, pelo contrário, gostam, acham-na uma mulher desafiadora, feminina até dizer “basta”, mas sem ser lamechas nem “barbie” como agora se diz, uma artista intocável, misteriosa, distante, como os grandes artistas devem ser. Uma brilhante jogadora no ténis da vida, numa sociedade onde o court é só para sócios, e nos jogos têm sempre quem lhes apanhe as bolas…
Já tenho pensado que se hoje tivesse aquela idade e dissesse: – “…mãe, preciso de dois mil escudos para ir ao concerto a Alvalade…” – quem é que eu agora iria ver? E só aquele bicho de palco, aquele furacão que arrasta multidões e me faz vibrar da mesma forma, me vem à ideia: Tina Turner.
Fui ao espectáculo e, hoje, passados trinta e sete anos, tenho na minha frente a sua fotografia autografada, e do outro lado do telefone a minha querida amiga e colega Simone:
– “…meu querido Carlos, escreve qualquer coisa para este meu livro, teria muito gosto nisso.”
Não sei se ela terá dito mesmo “este meu livro”. Mas eu quero pensar que este será um dos muitos que o seu talento ditará.
Assim, sem pretender escrever as minhas memórias, resolvi avivar algumas recordações de tempos que deveriam, de qualquer forma ser referência, para progredirmos como seres humanos e não nos deixarmos cair nos mesmos erros. Temos obrigação de reconhecer, estimar, preservar e agradecer a Arte, qualquer que seja a sua expressão, falando de como nos sensibiliza e toca, deixando marcas para o resto das nossas vidas, mesmo que negativamente.
Recuemos um ano. Fevereiro de 1964. Tempo triste para mim.
Ainda hoje lembro e sei aquele fado que me foi ensinado, frase a frase, com um fio de voz fino e fraco, entre delírios, dias de aparentes melhoras e recaídas…
No quarto, deitada, o gato aos pés da cama, eu encostado ao lado na cabeceira, a minha avó ia desfiando aquele rosário de versos do fado do soldado português:
“…é teu dever
Saber morrer como um forte
Não tenhas medo da morte
Pois só se morre uma vez…”
Palhavã, palavra maldita nesse tempo, poucos eram os que iam e voltavam. Útero…palavra difícil e feia para uma criança que, havia pouco tempo, penetrara timidamente no estudo dos aparelhos respiratórios, digestivo e circulatório. Porquê tudo aquilo? Para quê tanto sofrimento? Onde estava Deus? De que serviu a catequese até à preserverança, e fazer parte da Irmandade do Carmo? Porquê assistir à missa como menino de coro e todo aquele latim decorado?
“…se a avó melhorar, juro que vamos os dois a Fátima agradecer à Virgem…”
A avó não melhorou e eu jurei que nunca iria a Fátima. Não vou discutir crenças nem religiões. Por enquanto, ainda continuo a observar como cada um acredita no que acha mais conveniente; sobra-me pouco tempo para conversas…Pode ser que a Senhora de Fátima tenha feito alguns milagres. Possivelmente aqueles em que nos leva aos médicos certos, que nos receitam os medicamentos certos, ou contemplar-nos com a sorte de descobrir o problema quando ainda se vai a tempo de acabar com ele. De resto, se foi um objecto não identificado que deu três voltas à Cova da Iria como se fosse o Sol, ou não, não discuto, vou observando as teorias… Só lamento é que em 1917 ainda não houvesse “media”, nem satélites para captarem as aparições e divulgarem os milagres…e mais: promoverem os seus protagonistas…Só a Igreja. E mesmo assim, uma das minhas tia-avós que faleceu recentemente com cem anos, continuava convencida de que a descida do homem na lua tinha sido uma grande encenação dos americanos… Não é que eu esteja tão desumanizado que não tenha momentos de fraqueza como qualquer pessoa, também digo “ai meus Deus”, e benzo-me antes de entrar em cena… O que acontece é que o grau de auto-estima varia em cada um. Acreditarmos em nós como seres racionais, acreditarmos nas nossas capacidades e até, se como dizem as Sagradas Escrituras, fomos criados à semelhança de Deus, é meio caminho andado para se chegar aos objectivos. Por isso que relevância teve quebrar a jura, e ir a Fátima passados trinta e cinco anos, a pedido da minha mãe, com o pretexto de que não queria morrer sem visitar esse lugar sagrado?...Foi bonita a visita, ela continua viva, e acreditem tal como eu… Já visitou, está visitado. Lembram-se daquela “Avé Maria do Povo”, que faz parte do repertório da Simone? Escutem-na! Como a vida, enquanto dura, é uma aprendizagem e armazenamento de conhecimentos constante, devo dizer-lhes que hoje, a minha mãe mudou de opinião sobre a minha cantora de eleição. Quem os meus filhos ama…Desde “Lado a Lado”, “Sol de Inverno”…a Eduarda…”Fúria de Viver”, “Desfolhada”, o silêncio, a mudança de voz…O Pedro…”Apenas o Meu Povo”…A Eduarda e o Pedro…Os jornais, a televisão, a rádio…O Varela…E o teatro, até à minha estreia no Parque Mayer com a Laura Alves, alguns anos passaram, ela na sua luta pela vida, e eu em estudos, na guerra, na esperança de um dia vir a ser quem sou hoje…este Carlos Quintas de quem, hoje, a Simone faz o favor de ser amiga.
Um dos meus momentos mágicos, a entrada num camarim do Teatro ABC, levado pelo saudoso Varela Silva. Estávamos a ensaiar uma peça no Monumental, ele era o encenador e eu revelei-lhe o meu sonho de criança, ser apresentado à Simone…O Varela era daqueles homens capazes de realizar sonhos. Ainda estava mais bonita do que quando a vi em Faro. O cabelo cobreado, caído em ondas pelos ombros enquadrava o rosto agora magro, esculpido em estilo romano, donde sempre se destacaram aqueles olhos grandes e verdes como dois peixes num aquário de sabedoria e talento. Como uma Árvore esguia com as raízes bem assentes na terra, disse-me do alto da sua folhagem com uma voz madura: “Olá Carlos, já ouvi falar muito de si. Não deixe que esse senhor o atormente…” Mais tarde percebi que, o que para muitos resultava um tormento, para mim foi maestria. Esta era a Simone que eu sempre idealizara, tratando a Vida por tu! Veio a amizade, o companheirismo, as cantigas, o teatro, algumas tímidas confidências, depois mais, conheci o Pedro e a Eduarda, noites de longas conversas, falou-se de ilusões e desilusões, concretizaram-se projectos…mas nunca consegui tratá-la por tu…ainda hoje. Se fosse preciso, eu era capaz de continuar a pagar para a ouvir cantar. Mas um dia…Houve uma pausa…A Árvore desfolhava-se…A Simone não estava bem… É nestas alturas que se dá um black-out nos sentidos em que pomos em dúvida donde vimos, para onde vamos ou se vale a pena ser quem somos. Foram dias de angústia, sem saber qual a forma de pôr a engrenagem da vida de novo a funcionar em pleno. Tentar ajudar…mas como? Não sei se a amizade, a compreensão, o amor, e tudo aquilo que de bom nos rodeia chega para aliviar a consciência e a traição de se ser humano. E lá vamos nós abrir as gavetinhas da mortal memória…Recordei a Esplanada em Faro, a minha avó, o gato aos pés da cama, a Senhora de Fátima, o silêncio, o sofrimento, a mudança de voz, a “Ave Maria do Povo”, o encontro no ABC, os “media”, a Eduarda e o Pedro, o Mestre, a amizade, e nada fazia sentido! Isto pensei eu…mas estava enganado…
“…Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas de um ultrajante fado, ou tomar armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo?...”*
E eis que a Árvore se ergue de novo, e do alto da sua folhagem diz com a sua voz madura:
“É que não me apetece nada!”
E com “Fúria de Viver” pôs-se “Lado a Lado” com a “Sensatez”, pensou “Começar de Novo”, foi “Degrau em Degrau”, cantou uma “Ave Maria do Povo” e gritou “Glória, Glória Aleluia”, “Quem Disse que Morreu a Madrugada”???!!!
Carlos Quintas
10-05-2002
* (Hamlet, de William Shakespeare)
E com “Fúria de Viver” pôs-se “Lado a Lado” com a “Sensatez”, pensou “Começar de Novo”, foi “Degrau em Degrau”, cantou uma “Ave Maria do Povo” e gritou “Glória, Glória Aleluia”, “Quem Disse que Morreu a Madrugada”???!!!
Carlos Quintas
10-05-2002
* (Hamlet, de William Shakespeare)